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Análise | Returnal se destaca na jogabilidade e polimento, mas peca como rogue-like

Returnal é uma raridade dentro de uma indústria de jogos dinâmica e ágil, onde tendências vêm e vão, mas há pouco espaço para arriscar com um gênero menos popular e considerado “ultrapassado” pelo grande público. No meio da busca constante por mais jogadores e mais retornos por jogo publicado, ter um rogue-like com esse nível de polimento é quase um milagre.

Os viciados em Arcade da Housemarque foram os responsáveis pelo desenvolvimento e não abriram mão das características mais marcantes do gênero, sem temer retaliações por dificuldade elevada ou frustração. O resultado é um jogo que, embora tenha alguns conceitos datados e peque em partes do design, entrega uma experiência fresca, autoral e desafiadora.

O pacote PS5 completo

Desde que joguei a demo do Astro’s Playroom no lançamento do PS5, nenhum outro jogo tinha conseguido mostrar a capacidade do pacote de novidades do console com tamanha maestria. Demon’s Souls, por exemplo, fez um uso tímido, para não dizer pobre, do DualSense. Jogos de estúdios terceiros nem sempre usam o potencial do SSD e falham bastante com o controle cheio de firulas da Sony. Não é o caso de Returnal. Ele apresenta o pacote completo e é, talvez, o melhor exemplo do que a experiência em um PS5 traz de diferente.

O primeiro impacto é com a Tempest Engine, a parafernália que vem dentro do console para reproduzir som surround de forma simulada nos fones de ouvido, algo como o Dolby Atmos. O resultado, tanto de qualidade sonora quanto de espacialidade do áudio, são impressionantes, desde que você esteja usando um fone de ouvido compatível. Como o jogo não aposta em música, focando-se mais em ambientação, é possível ouvir claramente os perigos que rondam os biomas. Isso cria todo o clima de suspense e até de terror que o jogo tenta passar.

O DualSense é outro que logo mostra a que veio e entrega uma experiência única. Com a sua vibração é possível sentir a chuva pelo controle, como se as gotas estivessem batendo nele com a leveza, ritmo, visual e som que o jogo tenta te passar. Isso engrandece a experiência e a imersão de uma forma que não existe em outro lugar. Os gatilhos, que contam com sistema de pressão, fazem o ato de atirar, constante no jogo, uma atividade diferente de acordo com a arma e o seu especial. Vamos falar mais no jogabilidade, mas se você segurar a mira até metade do gatilho, ele tem uma resistência quando chega neste ponto, atirando de uma maneira. Se pressionar todo o gatilho, usa o tiro secundário e especial da arma. É uma adição bem legal e que, desde os tempos do GameCube, não via a luz do dia.

O loop do jogo é morrer e tentar de novo, nada mais propício para mostrar como o SSD é um avanço colossal dessa geração. Não dá tempo de respirar após uma morte e já entra na tela, imediatamente, a nave da personagem caindo no planeta para mais uma tentativa. A forma como isso diminui a frustração por um erro é massiva e uma mão na roda para gêneros desafiadores que punem com vontade o jogador. Teletransportes pelo mapa também são quase instantâneos e não há uma tela de loading em momento algum, desde quando você inicia o jogo até quando o console é desligado.

Não vamos esquecer também de falar sobre o quão legal são os gráficos e a performance. Há ray tracing na iluminação, HDR de qualidade, e 60 fps, o pacote completo. A arte de horror sci-fi com inimigos que mesclam referências ao filme Alien e obras de H.P. Lovecraft é para lá de competente e vai maravilhar quem é fã do estilo.

Antes mesmo de falar do jogo em si, acho importante levantar tudo isso. Por ser um jogo exclusivo do PS5, muita gente vai acabar se questionando se ele entrega algo que justifique essa escolha. Entrega! Provavelmente não era impossível tê-lo de alguma forma no PS4, mas os sacrifícios seriam enormes e acabariam por descaracterizar o jogo. A forma como usam o PS5 nele é soberba, sendo uma parte tão grande da experiência que fica impossível não detalhar o impacto disso nesta análise.

Loop de morte

Bem, mas o que é o Returnal? O esqueleto do que faz o rogue-like é usado de forma quase amarrada aqui e a vontade de integrar as regras à narrativa faz com que tudo tente explicar para o jogador como funciona a dinâmica. O nome, a história, a jogabilidade, tudo tenta ser interligado e justificável.

Quando o jogo começa, a sua personagem, Selene, uma astronauta carregada de militarismo, está em uma nave e cai em um planeta hostil. A nave fica em pedaços e a única saída para ela é seguir em frente e tentar descobrir uma forma de escapar. A morte virá inevitavelmente e de repente tudo se repete, da queda da nave à perda de memória. Quantas vezes ela já tentou escapar? Até onde ela foi? Por que ela está presa nessa repetição? Quem são esses inimigos humanoides e sencientes?  O que houve com essa civilização? A cada incursão as perguntas aumentam e alguma resposta é dada. A narrativa é interessante e tenta se destacar, algo esperado para um jogo exclusivo da Sony.

A grande sacada desse gênero é não deixar que nenhuma “run”, como são chamadas essas incursões, seja repetida. No Returnal o mapa é formado por blocos que são organizados aleatoriamente e a experiência tenta ser sempre diferente. Para “zerar” um jogo desse, é preciso completar toda a jornada em uma run perfeita, onde você não morre para voltar ao início.

O grande desafio dos jogos que fizeram sucesso nesse gênero recentemente, como o excelente Hades, é tentar fazer cada tentativa valer a pena, deixando algo para o jogador utilizar nas próximas investidas e avançar de alguma forma a narrativa. Neste ponto, o jogo da Housemarque falha no design.

Uma run bem feita no Returnal pode durar horas e no fim não serve para praticamente nada. As únicas coisas que você leva de uma run são uma moeda de troca chamada Ether, o progresso na habilidade das armas e, se você for longe o suficiente, itens de interação com o cenário, que permitem acessar áreas inéditas. É muito pouco em várias situações e causam uma frustração que te afasta do jogo.

Para continuar no exemplo do Hades, o jogo do deus grego permite melhorar coisas na base, comprar melhorias para o personagem, novas armas, e avançar na narrativa com a interação com personagens após cada run. No jogo da Housemarque você, por várias vezes, retorna com a pistola inicial e nada do que você fez valeu o tempo gasto.

Isso cria uma sensação falsa de dificuldade, que na verdade é falta de progressão. É como se ao morrer em um RPG a sua experiência e itens fossem totalmente retiradas e sem nenhuma contrapartida. É simplesmente te obrigar a voltar para o nível 1 constantemente sem ver progresso relevante. Isso deixa o jogo totalmente dependente da aleatoriedade. Se o jogador conseguir encontrar uma boa arma e bons equipamentos vai conseguir avançar, caso contrário, está condenado a perder o tempo e provavelmente não vai avançar em nada.

Se cada run passasse uma experiência muito diferente da outra, até daria para relevar. Mas os blocos acabam se repetindo mais rápido do que você gostaria e de repente o pior pecado para um rogue-like é cometido, você começa a achar o jogo repetitivo. Nem mesmo os objetos que permitem explorar algumas salas novas, no melhor estilo Metroid, vão fazer o suficiente para limpar esse gostinho. Até porque, mesmo com os atalhos que levam direto para os chefes, sem ter a paciência de coletar equipamentos e melhorar as armas, a sua empreitada tem muita chance de dar errado e frustrar ainda mais.

Outro problema está na forma como o jogo salva a progressão. Toda run precisa ser completada. Seja morrendo, seja vencendo. Se você desligar o console, cair a energia, ou pior, o jogo travar, a run será reiniciada. O excelente The Binding of Isaac tinha cometido esse erro na sua primeira versão. Nas DLCs mais recentes, permite um autosave entre as salas. Hades também faz isso. A Housemarque disse que está atenta ao feedback da comunidade sobre os problemas com os saves, especialmente porque o jogo trava de forma não tão rara. Comigo, por exemplo, foram ao menos três vezes em cerca de 25 horas, algo que deve mudar com a chegada de atualizações.

Os outros jogos desse gênero geralmente passam por um bom tempo no chamado Acesso Antecipado, onde os jogadores podem participar do desenvolvimento, e problemas de design dessa natureza ficam mais claros. Returnal tem muitos méritos, especialmente nos quesitos técnicos e de jogabilidade, mas carece de alguns balanceamentos, conceitos e sistemas que teriam sido melhor implementados em um modelo de desenvolvimento desse tipo. Fica a expectativa para que a Sony permita, no que diz respeito a recursos, essas mudanças necessárias no decorrer desse ciclo de pós-lançamento.

Jogabilidade Fina

Se o jogo peca na forma como lida com os seus ciclos e conceitos, na jogabilidade ele entrega e muito. Não é uma surpresa, já que Resogun, um dos jogos anteriores da Housemarque, já tinha sido um marco nesse quesito na geração passada.

Selene conta com uma série de recursos para lidar com um leque enorme de inimigos. Ela consegue esquivar,  e após um tempo recebe uma espada para golpes corpo a corpo, e conta com uma infinidade de itens e equipamentos para formar uma build destruidora de aliens.

Atirar e combater aqui é extremamente responsivo e justo. Quando você morre, sabe que a culpa foi inteiramente sua. Os hitboxes são bem feitos, as arenas permitem abordagens diversas e tudo depende apenas da sua habilidade, tirando a questão da sorte com os equipamentos encontrados.

Ao todo, são seis biomas diferentes, com um checkpoint após o terceiro e cada um conta com as suas peculiaridades. A floresta inicial é mais fechada, com salas menores e bem definidas. Já o deserto ou o fundo de um oceano são bem mais abertos e o que forma uma sala pode ficar turvo, já que as áreas são maiores e a divisão entre uma sala e outra nem sempre é física com paredes ou portas, sendo apenas simbólicas no mapa.

Todos esses biomas escondem inimigos únicos e poderosos, que podem disparar dezenas de ataques de uma vez, preenchendo a sua tela com perigos que precisam ser evitados. Em muitos momentos parece que você está jogando um dos “Shoot’em ups” de “navinha” clássicos, gênero em que a própria Housemarque é fera.

A cereja do bolo, que na verdade aqui é o que dá o toque genial, são os chefes. Cada bioma tem um chefe desafiador, que conta com três etapas e desafiam o jogador a dar o seu melhor. No geral, eles são mais fáceis do que vencer o caminho que leva até o confronto, mas o deleite visual e a tensão de não morrer logo no clímax do ato é uma experiência memorável e que faz até esquecer os tropeços.

Terminei o jogo com quase 50 mortes, cerca de 27 horas e uma boa impressão. Ainda há um terceiro ato com um final verdadeiro para buscar e diversos segredos que cada área esconde, o que contribui para um fator replay relevante. Não traz uma experiência memorável do ponto de vista de design ou da narrativa, mas é o pacote mais completo que o PS5 conseguiu oferecer com um novo título por enquanto. Em resumo: a jogabilidade é maravilhosa, havendo um nível de polimento altíssimo sem que a visão autoral seja comprometida.

Conclusão

Returnal é quase um milagre. Um rogue-like super desafiador em pleno 2021, com nível de polimento comparável ao de um jogo AAA, com toda a pegada autoral e nada fácil de digerir da narrativa, não era algo que eu esperava. O jogo peca no design das suas runs e na forma como lida com a progressão, mas a qualidade da jogabilidade, o pacote completo de recursos do PS5 e especialmente os chefes de cada bioma fazem tudo valer a pena, desde que você tenha paciência.

Prós

  • Uso exemplar do DualSense
  • Áudio espacial contribui muito para a imersão
  • 60 quadros por segundo praticamente cravados
  • Chefes de tirar o fôlego
  • Gênero pouco explorado no mainstream
  • Estilo de horror sci-fi bem construído nos cenários
  • Variedade das armas

Contras

  • Design das runs é pobre
  • Progressão depende muito da aleatoriedade
  • Crashes acontecem em quantidade maior do que a aceitável
  • Sistema de salvamento arcaico, que atrapalha pela duração da jornada

Nota: 8.0

Uma cópia do jogo foi fornecida pela Sony para elaboração desta análise

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