Análises

Bakumatsu Korinden Oni

O período do “Bakumatsu”

Uma vez feita a pergunta “quais são os grandes RPG ’s do SNES?”, todos aqueles que, como eu, gostam de RPG e estão vinculados à cultura ocidental dirão sem dúvida “Chrono Trigger, Zelda, Final Fantasy VI, Star Ocean etc”, com pequenas particularidades e subjetividades. Não há absolutamente nada de errado nessas respostas, que são compreensíveis no nosso contexto. Porém, o que quero mostrar com esta análise de Bakumatsu Korinden Oni (BKO) é que nossa condição de pessoas vinculadas à cultura ocidental influencia fortemente nossa percepção em aspectos diversos. Em outras palavras, se a nossa cultura por um lado nos oferece um leque de possibilidades, por outro ela nos limita as possibilidades também.

Após jogar um rpg que foi uma surpresa muitíssimo agradável, tentarei agora demonstrar que a lista de grandes rpg’s do SNES inclui preciosidades às quais não temos acesso devido a uma forte e incômoda barreira cultural que separa o Oriente e o (Des)oriente, que somos nós. De fato, apenas quando grupos independentes se empenharam na tradução de jogos como Tales of Phantasia e Star Ocean é que pudemos ter acesso a essas maravilhas. Foi grande a espera pela tradução de Far East of Eden Zero, e temos ainda grandes jogos como Bakumatsu Korinden Oni, seu antecessor Kishin Korinden Oni e Fuurai 2, que talvez nunca sejam traduzidos (pelo que sei, nenhum grupo está trabalhando neles).

Os gráficos

Não tem jeito: por mais que a parte gráfica não seja o mais importante num RPG, é difícil negar que as imagens sejam o que primeiro chama a atenção. Existem jogos que se tornam amores duradouros, após chegarmos ao final deles 2 ou 3 vezes, mas o primeiro passo, a paquera começa quando um jogo se insinua pra nós com seus gráficos atraentes (metáfora interessante…). Assim foi com BKO, que despertou meu interesse logo de cara com seus gráficos belíssimos. O desenho dos personagens está ótimo, as animações de batalha são arrasadoras e todos os detalhes japoneses são um delírio visual (semelhante a Suidoden II, que retrata a China). As faces que aparecem junto a cada diálogo têm muita expressão e personalidade. Golpes especiais, magias e invocações estão coloridos e muito bem feitos.

As casas japonesas, assim como as muitas montanhas do país, são uma viagem a um Japão que passa do Feudalismo para a Modernidade (o período a que chamamos Feudalismo equivale, no Japão, ao Shogunato, porque o poder se concentrava nas mãos dos shoguns). Dois exemplos interessantes são as armaduras de samurai que costumam ser parte da decoração das casas e o monte Fuji, onde se passa a parte final da estória. É verdade que o ambiente sempre japonês se torna um tanto monótono às vezes, mas isso é parcialmente solucionado quando damos um “pulinho” nos EUA, onde índios malvados e sem coração estão roubando as terras de uns tais peregrinos (aliás, esses caras-vermelhas selvagens fizeram questão de nascer na terra para roubá-la com mais facilidade).

Falarei sobre esse assunto mais detalhadamente na parte destinada à estória. Se é verdade que os gráficos de BKO não se comparam aos de Far East of Eden Zero, Star Ocean, Tales of Phantasia e Chrono Trigger, é igualmente verdade que apenas esses jogos o superam nesse aspecto.

O Som

Outro elemento que ajuda muito a dar charme a um jogo são os seus sons. É impossível, por exemplo, falar em Final Fantasy VIII e não mencionar aquela maravilha que é a música Eyes on Me, com letra, voz e melodia simplesmente perfeitas! BKO também tem ótimas músicas, que novamente não são as melhores do SNES mas certamente estão no grupo “A”.

A música das cidades japonesas é muito boa, assim como a que toca na abertura e em momentos de adrenalina. Igualmente, as músicas das batalhas, das dungeons e do mapa estão bem acima da média. Os diversos efeitos sonoros (como espadadas, tiros e magias) estão muito agradáveis. Se eu disse que BKO não é o melhor do SNES em termos de som, é porque é muuuito difícil competir com a perfeição das músicas de Zelda e Chrono Trigger, ou a música cantada de Tales of Phantasia. Mas repito que o som de BKO está bem acima da média.

Pra mostrar o quanto BKO é bom em termos de som, insisto na música da abertura. Se compreendermos os diálogos do prólogo do jogo (com o FAQ em inglês, que tenho), aquela música é simplesmente perfeita porque transmite a ação e a emoção do momento. Só jogando pra entender! Mais uma vez, porém, o jogo desliza por ser um tanto repetitivo, já que todas as cidades japonesas têm a mesma música (mesmo aquilo que é bom enjoa, certo?). E mais uma vez o problema se torna menor pelo fato de haver um ambiente novo (incluindo nova música) quando atravessamos o oceano.

O Sistema de Batalha

Imaginem o que vou descrever agora. São quatro personagens, numa visão em terceira pessoa. Os personagens efetuam golpes físicos simples, com a possibilidade de um crítico que tira o dobro e tem uma ótima animação. Temos ainda várias magias – de fogo, gelo, vento, rajadas de energia que saem da espada etc. – sempre com uma animação bem legal. Além disso, os personagens têm um tipo de golpe especial, baseado no Karma, que tem grande poder e também ótimas animações. Calma, ainda não acabou…

Na parte final do jogo, cada membro do grupo adquire a possibilidade de se transformar em um guerreiro super poderoso, e seus golpes – pra variar! – têm ótima animação. Que péssimo, não acham? Ah, é possível fazer invocações também e – adivinhem só – a animação é legal.

Quanto aos inimigos, eles são numerosos e variados em termos de aspecto físico e golpes (alguns são meio esquisitões, mas nem tudo pode ser perfeito…). Além disso, são muitos os chefes, alguns deles difíceis a ponto de exigir uma boa estratégia de batalha. Tudo bem que as batalhas aleatórias são muito numerosas, mas esse problema é comum à grande maioria dos RPGs, infelizmente. E, no fim das contas, os inimigos variados e as muitas possibilidades da batalha a tornam divertida. Outra coisa legal na batalha é que, além das chamadas armas brancas, como espadas e machados, estão disponíveis também armas de fogo, como espingardas. Isso pode parecer estranho à primeira vista, principalmente para quem ainda não conhece muito sobre a história japonesa, mas faz todo sentido se considerarmos que a época em que se passa o jogo é justamente quando o Japão teve contato com outros países, que trouxeram, entre outras coisas, esse tipo de arma.

Pois é… As batalhas de BKO são mesmo toscas, deixam muito a desejar, como vocês podem ver! :-P

A estória

O que considero como principal em um RPG é sua estória. Não que eu desconsidere ou menospreze os outros fatores, mas todos os grandes jogos do gênero, ao meu ver, têm necessariamente esse elemento em destaque. E costumo dividir a estória em duas partes: a trama, que é a seqüência de acontecimentos; e os personagens, com suas características próprias e a relação que estabelecem entre si. Como tentarei mostrar, BKO é muito bom em ambos.

O personagem principal é Yamatomaru, um garoto de 16 anos que vive em uma típica vila japonesa, com sua mãe, e que (como todo bom herói) tem muita coragem e um forte senso de justiça. Como seu pai morreu recentemente, e por estar inserido em um momento histórico de instabilidade em seu país, ele resolve sair em busca de maturidade e virtude. É quando encontra Natsumi, uma garota apenas um ano mais jovem e cujos poderes ainda não vieram totalmente à tona, por assim dizer.

Os dois encontram Juurouta – ou melhor, são encontrados por ele – que é um poderoso samurai a serviço da organização chamada Shinsengumi (falarei mais a respeito da organização logo adiante). Ele percebe o valor dos dois jovens e se une a eles. Após os três caminharem por alguns lugares na parte central do Japão, acabam encontrando também Touya, irmão mais velho de Natsumi que demonstra estar disposto a proteger a “mana” unindo-se ao grupo, que durante um longo tempo fica sendo esse.

Os quatro vão a diversos lugares no país, e vão descobrindo, aos poucos, informações relacionadas a certos locais que apresentam um tipo de atividade espiritual, capaz de influenciar este mundo. Acontece que o Japão, por séculos, teve uma política de isolamento em relação aos demais povos, mas agora (ou seja, no final do século 19 e começo do 20), o país se vê num dilema: continuar assim ou se abrir para o contato com outros países? Muitos acreditavam que as intenções alheias eram as piores possíveis, mais especificamente se apoderar da energia mágica dos reiketsu (assim se chamam os locais de atividade energética), trazendo caos e ruína para a milenar cultura japonesa.

O grupo Shinsengumi, do qual Juurouta é membro (aliás, a gente acaba descobrindo que Juurouta é uma mulher), é contra a presença dos estrangeiros e se ocupa em proteger os reiketsu a todo custo. Porém, à medida que a trama se desenrola, vamos descobrindo que tudo é muito complexo, pois mesmo dentro da organização existem aqueles que são movidos pela ambição e querem ter acesso aos reiketsu em nome do poder.

O game tem uma estória que se confunde com a história do país, e isso realmente me fascina. Todo esse contexto histórico, em que os samurais se viram ameaçados pelas mudanças sociais do Japão, em que tudo mudava ao seu redor enquanto eles próprios tentavam ser os mesmos, é muito rico. Não é à toa que temos uma série de manga e anime como Samurai X (esse é o nome ocidentalizado de Samurai Rurouni Kenshin) ou filmes como O Último Samurai, que mostram exatamente essa realidade. Tudo isso está muito presente em BKO. À medida que percorremos o país, vamos entrando em contato com toda essa forte tensão ideológica.

O próprio nome do jogo também é muito interessante. “Bakumatsu” é justamente o nome dado a esse momento histórico de instabilidade e transição. “Oni” significa “demônio”. O problema está em “Korinden”. Encontrei no dicionário “koriru”, que significa “passar por uma experiência”, então concluí, não sem uma certa dúvida, que o título seria “A Experiência Demoníaca do Bakumatsu”, que tem muito a ver com a história (e a estória).

Mas ainda tem mais. Num dado momento, encontramos numa vila um sujeito de aspecto “diferente” (pra não dizer avermelhado), que mora numa terra distante, no extremo leste. O grupo segue o desconhecido em uma longa e perigosa viagem de navio. Chegamos então ao Far West (ou Far East, na nossa perspectiva), e a trama ganha fôlego novo. Nessa terra, está ocorrendo algo que Yamatomaru e seus companheiros conhecem bem: o povo nativo – ou seja, os índios – estão se vendo ameaçados por intrusos que se dizem superiores.

Um detalhe que foi muito bem retratado em BKO é a diversidade cultural entre os asiáticos, os europeus e os índios. Um exemplo disso é a religiosidade de cada povo: o save point no Japão é uma imagem do Buda, na cidade dos peregrinos é uma imagem cristã e nas vilas indígenas é um totem, que é aquele grande objeto sagrado feito de madeira.

As armas são igualmente variadas, pois enquanto os japoneses são munidos de espadas, lanças e afins, e os índios usam machados e bumerangues, existem também as armas de fogo do homem branco. Esse é, aliás, um aspecto muito positivo do jogo, pois ele é surpreendente ao revelar um lado sombrio e mórbido do ser humano. Afinal de contas, o que permite a um povo se dizer superior a outro, chegando até a destruí-lo e se apossar de seus bens? A resposta é uma só: maior poder de destruição.

Bakumatsu Korinden Oni é uma viagem inteligente e crítica a história da humanidade, ao mostrar dois povos unidos na barbárie da qual foram vítimas: os nativos do Japão e os da América. Seguindo na estória, um índio – na verdade, parece que é uma divindade indígena – se une ao nosso grupo, entrando no lugar de um membro que faz um grande sacrifício em nome dos companheiros (e, é claro, de todo seu povo). Essa cena, aliás, é muito dramática, e por isso mesmo vale a pena assisti-la. Como é de se supor, o grupo volta ao Japão, onde a trama continua.

O enredo de BKO tem muitas outras coisas legais, mas eu estragaria o prazer de jogá-lo se contasse tudo, não é? Tentei contar o suficiente para incentivar meu leitor a se aventurar nesse belo RPG. Confesso que é meio irritante jogar um jogo em japonês (principalmente para quem gosta de diálogos bem feitos, como eu), mas com um bom FAQ e munido de uma mente atenta, acho que vale a pena tentar.

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